terça-feira, 16 de março de 2010

Toco a tua boca

Julio Cortazar

"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha.

Me olhas, de perto me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas cavernas onde o ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim como uma lua na água".

Trecho do livro de Julio Cortazar
Rayuela (O Jogo da Amarelinha). Capítulo 7

Editora Record.

terça-feira, 2 de março de 2010

Eu voto nulo!

por Gui Campos

Então finalmente se acabou o carnaval e começou o ano no Brasil. Assim como acontece a cada 4 anos, 2010 promete espetáculos. Primeiro a Copa do Mundo. Então temos um pequeno recesso no meio do ano, e a campanha política vem com toda a força.

É uma história que conhecemos bem. Bem demais até. Trocentos candidatos têm direito a alguns segundos no horário eleitoral gratuito. Outros fazem showmícios e gincanas para arrecadar votos. E o eleitor, o mesmo eleitor que não se surpreende mais em ver nos noticiários os "representantes do povo" enchendo as meias e as cuecas de dinheiro, mais uma vez elegerá aqueles que organizarem o melhor show sertanejo ou que prometerem mais coisas.

A ignorância não é privilégio exclusivo dos iletrados. É nos anos eleitorais que isso é mais evidente. Não são poucos os representantes da pequena elite intelectual do país que votam pensando em seu umbigo. Naquele aumento de 28% prometido, ou naquele cargo público por indicação, no qual se ganha tão bem e se trabalha tão pouco. O coletivo não existe. Quem ousa pensar no melhor para a sociedade só pode ser um ditador comunista. Liberdade só para empresas e mercados. A sociedade fracassou.

Acredito que a corrupção, infelizmente, já é parte da nossa cultura. A romantização do "malandro" e do "jeitinho brasileiro" não são mais que odes a essa prática repulsiva que corrói as bases de qualquer tentativa de desenvolvimento real do país.

Mais que leis que nos protejam contra a corrupção, mais que um justiça que realmente puna os culpados, precisamos de honestidade. De noção de vida em sociedade. A corrupção está nas pequenas coisas. Desde aquele carro que corta todo mundo pela direita para se dar bem, ou o taxista que dá voltas para ganhar mais, ou o empregado que leva uma caneta para casa para economizar 50 centavos.

É claro que as proporções e as consequências são totalmente diferentes. No entanto, é a mentalidade que importa. A mesma mentalidade dos primeiros europeus que pisaram em solo americano: o objetivo é saquear o país em benefício próprio, afinal o "eu" é mais importante que o "nós".

Por mais que tentemos complicar as coisas, é tudo muito simples: o Governo, os Tribunais, o Congresso, não são mais nem menos que prédios com seres humanos dentro. As instituições são invenções nossas. Na prática, tudo o que há são prédios e pessoas. Dos prédios não podemos esperar muita coisa. Por isso só nos resta concluir que a culpa é das pessoas.

Por isso não podemos esperar transparência e honestidade dos governantes se nós mesmos somos, em maior ou menor grau, corruptos. Nunca mudaremos nada com leis ou punições, mas com consciência e mudança de atitude. Pode ser um processo longo e difícil, mas é o único real e definitivo. O matemático Pitágoras afirmou: "educai as crianças e não será necessário punir os homens". Cultura se transmite por mímica. As crianças aprendem a transformar-se em homens e mulheres imitando os adultos. Então a única maneira de educá-las é com o exemplo.

Este ano mal começou mas já foi marcante por prisões que nos deixaram orgulhosos e esperançosos de que a justiça realmente cumpra o seu papel. Agora nos resta, como eleitores, a responsabilidade de votar em pessoas que sejam de fato idôneas. Não é difícil descobrir a vida prévia daquele que se deseja votar. Basta uma busca na internet para saber tudo: quais projetos já apresentou, quanto e como gasta a verba indenizatória, os escândalos nos quais já se envolveu. O povo pode ter memória curta, mas nunca foi tão fácil o acesso aos arquivos da história.

Já como cidadão, a obrigação é tentar ser correto, justo e principalmente respeitar o outro. Entender que para que uma sociedade funcione é preciso saber que o todo é mais importante que o indivíduo. Trocar a postura de ganhar vantagem pela gentileza.

Eleger aos mesmo políticos de sempre é aceitar e legitimar as práticas políticas do nosso país. Que nessas eleições os votos sejam por mérito, e não por benefício. E se em meio à tanta gente não houver ninguém minimamente decente - o que não é difícil - não tenho dúvidas: eu voto nulo!