sábado, 7 de fevereiro de 2009

A difícil tarefa de ninar

Encontrei no meio dos meus backups uns textos da época da faculdade e resolvi ir colocando alguns no blog eventualmente... Esse aí é um deles.

A difícil tarefa de ninar
por Gui Campos

As crianças são muito mais espertas do que nós pensamos. É uma afronta à nossa avidez pelo saber. Enquanto estamos lendo o jornal, assistindo o noticiário, lá estão elas, entretidas com seus brinquedos ou com o desenho animado do canal 46. Acho que é por isso que elas nos surpreendem, porque elas absorvem algumas informações meio que sem querer e depois nós, pobres pais, é que temos de dar um jeito de explicar a elas o que quer dizer aquilo que ouviram.
 
Sempre fui muito honesto com minha filha. Tenho conversas sérias, de adulto para adulto, com ela. Apesar de seus 6 anos, disserta como se fosse gente grande. A cada dia é mais difícil conversar com ela. Hora de dormir:
 
- Papai, conta uma história?
 
Desde pequeno eu achava que a velhice é diretamente proporcional à chatice. Hoje tenho certeza. Não posso mais com príncipes encantados, até porque sempre os imagino na cabeça das crianças e, triste constatação: eles têm a cara de um Backstreet Boy qualquer. Bruxas malvadas, maçãs, carruagem, já estou farto de tudo isso. No entanto, ao ouvir um pedido desses de uma miniaturinha de gente que te olha com aqueles olhinhos miúdos, não há como cogitar a hipótese de negar. Comecei a falar uma historinha padrão, sem saber ao certo onde pretendia chegar.
 
- Era uma vez, numa terra bem distante, havia um príncipe que andava pelos campos...
 
- Papai, o que é um príncipe?
 
- É o filho do rei. Quando o rei morre é o príncipe que manda. Pois é, o príncipe estava galopando o seu cavalo branco...
 
- Papai, o Lula é um príncipe?
 
Choque. Não conseguia imaginar ninguém mais distante de um Backstreet Boy que o Lula. Mas ainda assim achei bom. Não precisava mais contar uma historinha, podíamos apenas conversar sobre o mundo. Eu me encanto com o ponto de vista das crianças...
 
- Não, filhinha, o Lula é o presidente.
 
- O que é presidente?
 
- É como se fosse o rei, mas o rei é rei até morrer, o presidente fica só 4 anos. Mas depois ele pode ser reeleito. Nos países democráticos, o povo escolhe o presidente. Tem vários candidatos, e todo mundo vota e quem recebe mais votos é o presidente. Quer dizer, tem vezes que não é assim. O Bush mesmo, não teve mais votos, mas eles arrumaram uma confusão lá e ele acabou ganhando.
 
- O Bush é presidente?
 
- É, dos Estados Unidos.
 
- E o Carlos Alberto?
 
- Não, filha. Ele é o síndico. Ele manda no prédio. Aí os prefeitos mandam nas cidades, os governadores nos estados e os presidentes nos países.
 
- Se os presidentes mandam nos países, quem manda no mundo?
 
- A Organização das Nações Unidas, ou ONU. Pelo menos a gente costumava achar que ela mandava. É uma organização que tem representantes de quase todos os países para tomarem as decisões do mundo. É como um pai que é responsável em cuidar de todos os filhos. Só que nem sempre os filhos obedecem.
 
- É mesmo?
 
- É. Aí o pai dá uns castigos. Deixa o país embargado, que é quando ninguém pode vender nem comprar nada dele. Mas isso se for um filho fraquinho. Tem aqueles filhos que podem aprontar o que quiserem que o pai finge que não vê... Os Estados Unidos mesmo são um filho que ficou mais forte que o pai, aí ele que começou a mandar por ser mais forte. É que o exército dele é muito maior que qualquer outro.
 
- É mesmo?
 
- É. Aí eles acham que podem fazer o que quiserem, invadir países, roubar poços de petróleo, prender todo mundo, sem dar satisfação pra ninguém. E o pior é que o povo tem medo, e aí ficam todos calados.
 
- Ah, papai, não tô entendendo nada!
 
De vez em quando eu esqueço que ela é só uma criança...
 
- É, melhor assim, minha filha... Já está tarde, vai dormir.
 
Ela me deu um beijo, virou-se e dormiu. Eu fui assistir o noticiário. Então percebi que, de fato, eu também não entendo nada do que acontece... Coloquei no 46 e acabei dormindo no sofá, ao som do Garfield. Há muito tempo eu não dormia tão bem... 


Trovinhas

A isca e a vara
por Gui Campos

A vara, que vara louca
Lança ofegante ao ar
a isca, que grita rouca:
"Como é bom poder voar!"

Do rio que tudo arrasta
Bertold Brecht

Do rio que tudo arrasta se
diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem.