segunda-feira, 17 de agosto de 2009

(...)

Mais uma vez a despedida,
e a terrível e conhecida sensação de que faltou um adeus.
A voz do outro lado da linha.
Que ruim é imaginar já não mais voltar a ver o teu sorriso,
dar-te um beijo na testa sentindo teu perfume.
E a certeza de que daqui para frente nada poderá ser igual,
para sempre tua ausência.
A casa vazia, o silêncio da tua falta.
O fim do conforto de saber-te sempre ali.
Ainda que distante, ali.
Observando com toda sua calma o mundo que se transforma
diante de tua porta. Esperando que nos aproximássemos
para receber-nos com um grande sorriso.
Perdemos uma parte de cada um de nós.
Essa parte faz falta, e essa falta dói.
Mas não há nada o que fazer, senão agradecer-te
por todos os generosos ensinamentos que sempre
te orgulhaste em compartilhar. Por tua tranqüilidade,
e pela tranqüilidade de saber-te presente,
pois também tu deixaste uma parte de ti.
E essa parte carrego orgulhoso,
em meu coração e em minhas veias,
que nesse momento se apertam de saudades.
Mas é reconfortante a certeza
de que partiste com toda a serenidade
que sempre tiveste em vida.
Tento compensar a dor de tua ausência
com a idéia de que um dia voltaremos a nos encontrar.
E outra vez ouvirei tuas histórias,
verei o teu sorriso,
e poderei dar-te um beijo,
sentindo o perfume em teus cabelos.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Adeus...

Poema de Natal
Vinícius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Crescer

Por Gui Campos 17/06/09

Em que momento crescemos? Quando exatamente deixamos de ser crianças e nos transformamos em pessoas chatas e complicadas? Por quê depois de velhos nos afastamos das pessoas que gostamos? Por quê não abraçamos mais? Não consigo me lembrar quando foi que deixei de tratar o outro com carinho.

Uma criança vê no outro um amigo, uma possibilidade de brincadeira. Mesmo que não falem o mesmo idioma são capazes de se entender. Acho que envelhecer é a arte do desentendimento. De fato. É aprender a desconfiar, a ver no outro uma ameaça.

A adolescência é o ponto médio entre esses dois pontos. Sente-se que algo está ficando para trás mas não se sabe ao certo o quê. Algo que já não pode ser recuperado. Acredito que essa coisa é o presente. A época do deixar-se relacionar. E não falo em sentido sexual, mas de amizade mesmo. Com o tempo acabamos aprendendo que nem sempre se podem cumprir as promessas de amizade eterna, pois o pra sempre às vezes dura muito pouco. Aprendemos a lidar com a perda de pessoas queridas, que se vão para longe. Algumas se mudam de cidade, outras de país. Algumas morrem. Avós, tios, tias, amigos... A morte pouco a pouco deixa de ser um personagem de filme de terror para ser o inimigo que está sempre à espreita, ao nosso lado, levando pessoas queridas.

Descobrimos que muitos “até logo” na verdade são “adeus”. Depois de muitos anos distantes, podemos um dia passar ao lado de uma dessas pessoas queridas de tempos atrás e nem sequer reconhecê-las. Isso sem falar nas dores do coração. São tantas lágrimas, tanto vazio, tanto desespero, que pouco a pouco aprendemos a aceitar a impermanência das coisas. E como o fazemos? Sem nos apegar a nada ou ninguém.

Nunca entendi a parte do budismo que fala do desapego. Se não tivesse apego por todas as pessoas que amo (e acredito que o verbo amar não se conjuga no passado) não teria a menor graça viver. Sigo sofrendo a cada dia pelas pessoas que se foram, desde aquele melhor amigo da 2ª série que se mudou pra Goiânia e eu nunca mais vi, à primeira namorada (que se mudou para o exterior) ou às saudades que sinto todos os dias de todos os parentes e amigos que perdi. Uma espécie de síndrome de Diógenes das recordações.

Talvez crescer seja isso, aprender a conviver com a ausência, com a obrigação de aprender a sobreviver só, com o medo cada vez menos imaginário e mais real da morte. Com a desconfiança e o desentendimento, com as paixões e amizades mais racionais e menos viscerais.

Acho que essa é a pior parte. Aprender a conviver com a autoprivação das demonstrações de afeto, mais com o tapinha nas costas e o aperto de mão e menos com o abraço apertado de um bom amigo. É, sem dúvida nós, adultos, deveríamos nos abraçar mais...


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Escrevi esse texto há um mês atrás, viajando de avião de Madrid para Porto. Havia uma criancinha ao meu lado que falava francês e uma no banco de trás que falava português. E apesar de não falarem a mesma língua passaram a viagem toda "conversando". Já eu sou cada vez mais chato e tenho mais preguiça de conversar com as pessoas que viajam do meu lado...

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Madrid de todos

por Gui Campos

Por pura injustiça, Madrid nem sempre é incluída nos itinerários pelo velho continente. Capital meio esquecida entre as cidades européias, encravada no centro da península ibérica, uma ferida no meio da Espanha profunda – a mais tradicional, que recebe pessoas de todas as partes do mundo e, pouco a pouco, aprende a conviver com o novo.

Em cada ruazinha, percebe-se que é feita de misturas: de culturas, de sabores, de odores, de cores. A mistura entre o moderno e o antigo, que dividem espaço na arquitetura, nas placas que dão nomes às ruas ou aos bares. Mistura de muitas línguas, que fazem cócegas nos ouvidos a cada caminhada pelas ruas do centro, sempre cheias de gente.

E se, em alguns momentos, é irritante a falta de educação de algum espanhol mais mal humorado, basta que saia o sol e a cidade se esquente um pouquinho para todas as praças se encherem de pessoas lendo, passeando com seus cachorros ou apenas curtindo o calor, e a antipatia já vai imediatamente embora.

Sem falar no clima boêmio da cidade, que ainda guarda o espírito da movida madrileña dos anos 80, bem retratada nos filmes de Almodóvar. São milhares de bares (impressionante como mesmo pela manhã estão cheios), com suas patas de jamón penduradas nas paredes e suas cervejas que costumam vir acompanhadas por algum tira-gosto, as famosas tapas. E não é raro entrar em algum café sem saber bem por que e descobrir por acaso um concerto incrível.

Para desfrutar Madrid é preciso pouco. Sem dúvida há visitas obrigatórias como a Plaza Mayor, os museus Rainha Sofia e Prado e o parque do Retiro, mas nada como um passeio sem compromisso e sem roteiro por suas ruas. Entrar em algum dos muitos espaços culturais da cidade, observar as pessoas, os detalhes dos edifícios e as esculturas que os adornam, escutar sem pressa um músico de rua na calle Preciados e curtir um pôr-do-sol no Templo de Debod. Aí sim, é possível imaginar um pouco melhor quão prazeroso é viver nesta cidade.

- Texto escrito para o livro fotográfico "As portas do Velho Mundo", de Monique Renne.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Dois clipes foda...

Preguiça de escrever, então vou só colar as informações dos vídeos no Youtube.

São dois clipes incríveis. O primeiro é "Her morning elegance", de Oren Lavie, um stop motion muito bonito e criativo. O segundo é 1234, da Feist, um plano seqüência muito bom também.



Her Morning Elegance
Directed by: Oren Lavie, Yuval & Merav Nathan
Featuring: Shir Shomron
Photography: Eyal Landesman
Color: Todd Iorio at Resolution
© 2009 A Quarter Past Wonderful

"Her Morning Elegance" written and produced by Oren Lavie, from the Oren Lavie album The Opposite Side of the Sea
© 2009 A Quarter Past Wonderful/Adrenaline under license from Tuition



1234
Music video by Feist performing 1234
with Patrick Daughters, Geoff McLean
(C) 2007 Polydor (France)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Miguelito e Shaolim

Mais um texto do início do século encontrado entre minhas coisas...

Miguelito e Shaolim
por Gui Campos

O pior é que foi sem querer. A gente tava sossegado, tomando umas e trocando uma idéia quando ouvimos os gritos. Estávamos tão mamados que ninguém sabia o que fazer. “Yo sabía muy bien lo que hacer y lo hice”.

Cala a boca Miguelito! Esse é o mais bêbado de todos. Nunca nem saiu do Goiás e acha que é mexicano. Não sei onde aprendeu esse portunhol, mas achou bonito. Achou uma garrafa de tequila no lixo há uns 2 anos e agora enche de pinga todo dia e acha que tá no México.

Mas como eu ia dizendo, os gritos vinham da casa do outro lado da rua. Uma casa grande, coisa de grã-fino. Mas são justamente esses os que mais fazem merda. Foi um grito alto. A gente olhou assustado. Menos a Grace, que a essa altura devia estar caída no chão mais louca que tudo. Porra, pensando bem, a gente tava tão doido que não sei nem como a gente ouviu alguma coisa.

Nessa, esse moleque pentelho do Miguelito já foi dar uma de super-herói. Viu uma vez o Chapolin na TV de uma loja e virou fã. Agora tá aí essa porra que só fala esquisito. O cara é manso, calminho... Mas quando toma a pinga (que ele jura que é tequila) vira bicho. Deve ser um espírito do mal que entra nele. Eu sei que o cara vira o cão! E como cão sente qualquer cheiro e corre atrás, lá foi o Miguelito espiar da janela.

Eu tinha duas opções. Ou ia com ele ou ficava assistindo a Grace vomitar feito uma porca em cima do próprio rosto. Já cansei dessas merdas. Fui com o Miguelito.

Yo sabía! Mira como el hombre tiene uma mala cara”. Sabía era porra nenhuma. Nunca sabe de nada. Só fala besteira. Nunca acertou um chute que deu. Também, chapado do jeito que sempre fica...

- Que hombre que porra nenhuma! Não tá vendo que é uma mulher ?

A mulher tava deitada em cima do piano. Aqueles vestidos que a gente só vê em filme: vermelho, com um corte que mostrava as pernas até quase lá. Esse povo rico tem cada coisa. Nunca vi dormir em cima de piano. Até pobre tem mais conforto. Ainda mais com essa roupa.

Mira que el hombre ya viene”. Era verdade. Pior que dessa vez o puto acertou. O cara vinha com uma pasta de metal. Conversou com a mulher umas merdas que não deu para entender. Acho que era russo, chinês, sei lá que porra era aquela. Ela continuou dormindo e ele mandou duas bolachas na cara dela. E não é que a mulher permaneceu quietinha? Mulher tem dessas coisas. A Grace mesmo no estado que tá agora eu podia encher ela de porrada que ela não ia nem ver. Porcaria nenhuma pra fazer, continuamos olhando.

Foi aí que o gringo abriu a maleta e lá dentro tinha um tanto de injeção.

Lo Chico va hacer una mierda”. Cala a boca, Miguelito. A mulher deve ser diabética. Você não sabia que rico sempre tem essas merdas? Esse menino vê muito filme.

Aí que o cara aplicou a injeção e a mulher começou a estrebuchar. Meu amigo, eu te digo que já vi muita gente passando mal, bebeu demais... Dessas coisas eu entendo. Agora, vou falar um negócio, aquilo daquela mulher eu nunca vi! Ela babava branco e ficava tremendo. Devia estar com frio. Às vezes dormiu escovando os dentes, sei lá. O bosta do Miguelito que sempre tem as idéias mais extraordinárias: “Él la mató. Yo lo sabía que ello se la iba a matar. Ya compreendí todo. Él hombre es un químico muy famoso. Ya lo he visto en um periódico. Mató la mujer para escribir los livros de la mujer, que conoce más química que ello y decir que eran tuyos. Yo ya lo sabía!” Sabía era porra nenhuma. Esse moleque não sabe nada.

- Essas mulher bonitas sempre tomam uns trem esquisito mesmo. É pra ficar com a pele mais bonita. Tu inventa cada estória, hein moleque? Se não tivesse fugido da escola, hoje seria escritor.

Pero, mira! Ella está murriendo! Vamos entrar en la casa”. Tu tá é doido, né Miguelito? Se a gente entra na casa desse barão só sai dali dentro de um camburão. E se ela estiver morta mesmo, em quem você acha que vão acreditar? No gringo cheio da nota ou em dois favelados? Se tinha uma coisa que o Miguelito ficava puto era falar que ele era favelado. Quis partir pra cima. Esse moleque precisa é de uns corretivos para aprender a tratar os mais velhos. Mas no que ele correu o cara já saia apressado do apartamento.

Vamos capturálo, Shaolin! Nosotros seremos los heroes”. Porra, Miguelito. Tu não aprende, né? Dei um cocão no moleque e mandei ficar quieto. Ainda pensou em correr atrás do gringo, mas ficou com medo de outro cocão. Voltamos pro lado da Grace. Já tava escuro. Acendemos umas velas pra iluminar o ambiente. Ficamos um tempão lá daquele jeito. Ainda tinha meia garrafa de pinga.

Acordei no dia seguinte com uma ressaca incrível. Botando as tripas para fora. Peguei um jornal na caixa do correio de um qualquer e puta que o pariu: "Químico alemão suspeito de assassinato". Taquei logo foi fogo no jornal. Se o Miguelito visse ia me pentelhar. Acordou depois de mim, sem entender porra nenhuma. Ele tava passando muito mal. Me viu com o resto do jornal na mão e perguntou: “Há salido algo del crimen del vecino?” Crimen porra nenhuma, Miguelito. Não aconteceu foi nada.

E não é que dessa vez o rapazinho tava certo? O cara nunca acerta e dessa vez foi na lata. Espero que ele não veja o jornal.

Venga, volvemos a la casa...” A essa hora eu já tava indignado. Um bêbado-herói que só quer ser o que salva o mundo. Mandei a resposta bem seca: Cala a boca, seu puto! A Grace chegou com a garrafa de cachaça, dei um bom gole pra curar a ressaca e passei para Miguelito. E ficamos ali sentados, em silêncio, ouvindo longe o rádio de algum posto de gasolina enquanto a Grace dançava com a garrafa na mão.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Pensamento do dia...

"Trabalhar para ganhar a vida está bem. 
Mas por que temos que gastar essa vida
que ganhamos
trabalhando para ganhar a vida?"
Miguelito / Quino

Sobre Deus e a Ciência

Esse é outro texto que encontrei no meio de documentos antigos, já tem bem uns 7 anos que escrevi isso...

ENSAIO
Sobre Deus e a Ciência
por Gui Campos 

Há alguns séculos, desde a consolidação da ciência e de seu modo de entender o mundo, a religião começou a perder seu monopólio. Seu ponto de vista não era mais soberano. Suas posições eram questionadas e novos paradigmas eram propostos. As duas visões – a científica e a religiosa – pareciam estar cada vez mais distantes. No entanto, encontrei um raciocínio que pode, finalmente, acabar com este ferrenho embate.

Para dar validade a esse meu ensaio, tomei como premissas algumas verdades científicas e religiosas. É óbvio que cientistas e teólogos precisam abrir mão de algumas de suas crenças e aceitar algumas das crenças de seus atuais inimigos. Como não creio em verdade absoluta, acredito que tanto uma quanto outra tem suas verdades e seus enganos, e é fundamental analisar com seriedade para “separar o joio do trigo”. É preciso deixar o orgulho de lado para unir, finalmente, o racional ao espiritual e construir um novo mundo de homens mais completos e holísticos. Creio que minhas conclusões não serão de difícil aceitação entre cientistas e religiosos, uma vez que provo a existência de Deus e a Teoria da Evolução.

Dentro dessas premissas as quais considero irrefutáveis, estão a de que um mundo como o nosso só é possível com a existência de um criador; a de que Deus nos criou à sua imagem e semelhança; a de que Deus é um só; a origem da vida segundo a ciência e a teoria evolucionista de Darwin.

Segundo a Biologia, a vida surgiu nos mares, que estavam repletos de um “caldo nutritivo”. Proteínas e aminoácidos se uniram e formaram conglomerados, os chamados coacervatos. Essa experiência foi repetida em laboratório, simulando-se a atmosfera terrestre do período. Misteriosamente, essas proteínas sem vida formaram a primeira célula, um organismo complexo, que carrega suas próprias informações em seu código genético. Esse fenômeno é inexplicável pela ciência. Assim sendo, aí estaria o dedo de Deus. Como diz a Bíblia, no livro do Gênesis: “Imagem e semelhança, Deus os criou”. Assim surge a vida, à imagem e semelhança de Deus.

Neste momento é preciso perceber o que, por mais óbvio que seja, ninguém ainda havia percebido: se Deus cria a vida à sua imagem e semelhança, e se ele a cria em forma de um ser unicelular, Deus nada mais é do que uma célula que vive, sozinho, no chamado Reino dos Céus. Mas aí está a ironia divina. Como as células terrenas estão sempre em interação umas com as outras, e se reproduzem, foi possível a elas evoluírem. Então se uniram e criaram seres pluricelulares, saíram das águas e povoaram os três ambientes: água, terra e ar. Enquanto tudo isso acontecia, Deus, único e imortal, não tinha como evoluir, uma vez que não há mutação se não há descendentes.

Isso explicaria a desigualdade mundial. Deus, unicelular, sem sistema nervoso central, nada vê, ouve, sente. É uma imensa célula, sentada em seu trono, mas sem nada poder fazer, pois seus sentidos são muito primários.

Essa teoria, que embora ainda seja uma mera hipótese até que experimentos a possam comprovar, é uma ótima oportunidade para ciência e religião finalmente se unirem. Assim que seja comprovada sua validade, os religiosos saberão que seus textos sagrados não estavam enganados, e nem estavam as pesquisas científicas. Finalmente poderemos acabar com a dicotomia espiritualidade versus racionalidade, e, enfim, nos tornaremos seres holísticos, não-fragmentados e completos.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

A difícil tarefa de ninar

Encontrei no meio dos meus backups uns textos da época da faculdade e resolvi ir colocando alguns no blog eventualmente... Esse aí é um deles.

A difícil tarefa de ninar
por Gui Campos

As crianças são muito mais espertas do que nós pensamos. É uma afronta à nossa avidez pelo saber. Enquanto estamos lendo o jornal, assistindo o noticiário, lá estão elas, entretidas com seus brinquedos ou com o desenho animado do canal 46. Acho que é por isso que elas nos surpreendem, porque elas absorvem algumas informações meio que sem querer e depois nós, pobres pais, é que temos de dar um jeito de explicar a elas o que quer dizer aquilo que ouviram.
 
Sempre fui muito honesto com minha filha. Tenho conversas sérias, de adulto para adulto, com ela. Apesar de seus 6 anos, disserta como se fosse gente grande. A cada dia é mais difícil conversar com ela. Hora de dormir:
 
- Papai, conta uma história?
 
Desde pequeno eu achava que a velhice é diretamente proporcional à chatice. Hoje tenho certeza. Não posso mais com príncipes encantados, até porque sempre os imagino na cabeça das crianças e, triste constatação: eles têm a cara de um Backstreet Boy qualquer. Bruxas malvadas, maçãs, carruagem, já estou farto de tudo isso. No entanto, ao ouvir um pedido desses de uma miniaturinha de gente que te olha com aqueles olhinhos miúdos, não há como cogitar a hipótese de negar. Comecei a falar uma historinha padrão, sem saber ao certo onde pretendia chegar.
 
- Era uma vez, numa terra bem distante, havia um príncipe que andava pelos campos...
 
- Papai, o que é um príncipe?
 
- É o filho do rei. Quando o rei morre é o príncipe que manda. Pois é, o príncipe estava galopando o seu cavalo branco...
 
- Papai, o Lula é um príncipe?
 
Choque. Não conseguia imaginar ninguém mais distante de um Backstreet Boy que o Lula. Mas ainda assim achei bom. Não precisava mais contar uma historinha, podíamos apenas conversar sobre o mundo. Eu me encanto com o ponto de vista das crianças...
 
- Não, filhinha, o Lula é o presidente.
 
- O que é presidente?
 
- É como se fosse o rei, mas o rei é rei até morrer, o presidente fica só 4 anos. Mas depois ele pode ser reeleito. Nos países democráticos, o povo escolhe o presidente. Tem vários candidatos, e todo mundo vota e quem recebe mais votos é o presidente. Quer dizer, tem vezes que não é assim. O Bush mesmo, não teve mais votos, mas eles arrumaram uma confusão lá e ele acabou ganhando.
 
- O Bush é presidente?
 
- É, dos Estados Unidos.
 
- E o Carlos Alberto?
 
- Não, filha. Ele é o síndico. Ele manda no prédio. Aí os prefeitos mandam nas cidades, os governadores nos estados e os presidentes nos países.
 
- Se os presidentes mandam nos países, quem manda no mundo?
 
- A Organização das Nações Unidas, ou ONU. Pelo menos a gente costumava achar que ela mandava. É uma organização que tem representantes de quase todos os países para tomarem as decisões do mundo. É como um pai que é responsável em cuidar de todos os filhos. Só que nem sempre os filhos obedecem.
 
- É mesmo?
 
- É. Aí o pai dá uns castigos. Deixa o país embargado, que é quando ninguém pode vender nem comprar nada dele. Mas isso se for um filho fraquinho. Tem aqueles filhos que podem aprontar o que quiserem que o pai finge que não vê... Os Estados Unidos mesmo são um filho que ficou mais forte que o pai, aí ele que começou a mandar por ser mais forte. É que o exército dele é muito maior que qualquer outro.
 
- É mesmo?
 
- É. Aí eles acham que podem fazer o que quiserem, invadir países, roubar poços de petróleo, prender todo mundo, sem dar satisfação pra ninguém. E o pior é que o povo tem medo, e aí ficam todos calados.
 
- Ah, papai, não tô entendendo nada!
 
De vez em quando eu esqueço que ela é só uma criança...
 
- É, melhor assim, minha filha... Já está tarde, vai dormir.
 
Ela me deu um beijo, virou-se e dormiu. Eu fui assistir o noticiário. Então percebi que, de fato, eu também não entendo nada do que acontece... Coloquei no 46 e acabei dormindo no sofá, ao som do Garfield. Há muito tempo eu não dormia tão bem... 


Trovinhas

A isca e a vara
por Gui Campos

A vara, que vara louca
Lança ofegante ao ar
a isca, que grita rouca:
"Como é bom poder voar!"

Do rio que tudo arrasta
Bertold Brecht

Do rio que tudo arrasta se
diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem.